
O que é a história?
Sócrates está em sua cela após a condenação de morte (Apologia), aguardando a data da sua execução. Um de seus amigos, Críton, vem visitá-lo e afirma ter um plano perfeito para realizar uma fuga da prisão, e Sócrates ter a continuação da sua vida em liberdade, porém obviamente em outra região, não em Atenas. Críton tenta convencê-lo do bem que seria realizado se ele não fosse executado, depois de condenado injustamente. Sócrates discorda totalmente de Críton: criticando a sensibilidade de Críton à opinião pública (o que os outros vão pensar), ele afirma não compactuar com a imoralidade de escapar de uma morte à qual foi legalmente condenado – o respeito pelas leis de Atenas prevalece, mesmo quando aplicadas erroneamente.
Para ilustrar esse pensamento, ele cria um argumento de três partes para explicar por que os cidadãos devem total lealdade ao Estado: primeiro, que os cidadãos devem ao Estado pelos benefícios que ele oferece; segundo, que os cidadãos sempre têm a oportunidade de convencer o Estado a tomar um curso de ação diferente; e terceiro, que os cidadãos sempre podem deixar o Estado se desaprovarem suas leis. Tomados em conjunto, os argumentos de Sócrates implicam que viver em um estado como cidadão é como assinar um contrato social consentindo em obedecer à vontade do Estado, mesmo quando discordar dela. Infringir a lei em resposta a um veredicto injusto significaria violar este contrato para se vingar e, portanto, cometer um erro por um erro.
Sócrates conclui argumentando que violar seus princípios morais em prol de seu próprio interesse significaria arriscar um destino ruim na vida após a morte, acrescentando que ele se sente intelectualmente confiante de que suas convicções se alinham com os princípios da justiça divina.
Quais são os conceitos principais?
A vida de virtudes – Críton e Sócrates apresentam dois relatos diferentes da vida virtuosa: Críton defende uma moralidade segundo a qual viver bem significa apoiar os amigos e a família acima de tudo, rejeitando a lei quando ela é injusta. Sócrates, no entanto, argumenta que a virtude é medida pela consistência de uma pessoa em aderir aos seus próprios princípios e aos da comunidade democrática – mesmo ao custo da própria vida.
Verdade e opinião pública – para Críton, a desonra pública é um grande mal. Ele sugere que só se pode manter uma boa posição moral em sua comunidade agindo de acordo com seus valores, e que agir de qualquer outra forma é “vergonhoso”. O argumento de Críton é, portanto, baseado em sua crença de que a comunidade é o juiz final da ação certa e errada. Sócrates, por outro lado, insiste que a verdade é totalmente independente da opinião pública. Por isso, não há motivo para se preocupar com a forma como os outros percebem as próprias ações, desde que sejam realizadas de acordo com o bem maior. As questões morais, desse ponto de vista, nada têm a ver com a opinião comum; são assuntos para uma elite filosófica qualificada, instruída. A desonra pública, por outro lado, não vale de nada.
Obrigação política – o relato de Sócrates sobre a vida virtuosa é baseado em uma versão do que os teóricos posteriores chamarão de teoria do contrato social. De acordo com essa teoria, viver em uma comunidade politicamente organizada é como assinar um contrato consentindo em seguir as regras que a regem. Para Sócrates, não há alternativa real para esse contrato – a vida desconectada, a do exílio, não é nem sequer digna de vida. Este contrato serve de base para suas visões sobre moralidade: porque alguém deve obediência à sua comunidade, seu bem coletivo deve sempre servir como padrão para avaliar as ações certas e erradas. Se um cidadão decide ficar nesse Estado, ele consente implicitamente em obedecê-lo. Essa obediência equivale a um contrato obrigatório de lealdade. Não importa o que o estado ordene que um cidadão faça – ir à guerra, ir para a prisão, enfrentar a própria execução – não há outra escolha moral a não ser o consentimento. Por essa razão, a obediência ao Estado supera todos os outros interesses.
Morrer sentindo-se bem – Sócrates não se incomoda com a perspectiva de sua própria execução. De acordo com sua visão de mundo, essa atitude modela a abordagem de uma pessoa sábia com relação à morte: se a bondade de alguém importa mais do que a vida, então a morte é insignificante para quem viveu bem. O bom pode morrer sem medo. Essa promessa é uma das principais questões da filosofia platônica: viver de acordo com princípios bem fundamentados e consistentes pode libertar o indivíduo das preocupações passageiras do dia a dia, a fim de cultivar o conhecimento de uma verdade absoluta e eterna que transcende a vida e a morte.
Outras questões relevantes?
A lei de Atenas simboliza a sabedoria e a autoridade divinamente sancionadas da comunidade política organizada. Sócrates não está falando apenas sobre as leis escritas que governam Atenas. A palavra grega traduzida como “lei”, nomos, na verdade significa mais: a palavra também pode ser traduzida como “costume” ou “instituição” de forma mais ampla. Como os nomoi fornecem todos os benefícios advindos da existência em uma comunidade social, Sócrates argumenta que um cidadão deve à lei ainda mais lealdade, piedade e obediência do que deve a seus pais. Isso é importante notar porque Sócrates parece dar crédito à “lei” por todos os bens sociais que um cidadão recebe por viver em uma comunidade política – uma reivindicação que pode parecer exagerada se tomada em referência apenas a estatutos escritos. A lei também se estende ao reino dos deuses, pois as leis passam a simbolizar a verdade divina. No final do diálogo, as leis ameaçam Sócrates com punição na vida após a morte se ele as desrespeitar agora e fugir da prisão. O fato de as leis possuírem conhecimento suficiente para fazer esse tipo de ameaça indica que elas representam simultaneamente as instituições humanas e a verdade sobre-humana: transgredir a lei significa transgredir também os deuses. A lei de Atenas, então, abrange mais do que as normas sociais que sustentam as estruturas políticas do estado; também aponta para a autoridade divina e transcendente que Sócrates encontra refletida em um estado bem ordenado.
Muito interessante e profundo Fernando. Socrates olhando uma sociedade onde as leis tem valores. Onde existe o homem moral. Não onde cada “Estado” faz a lei que quer na hora que os convém. Imagina comparar esse pensamento com as leis nos “Estados” que temos!!!
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Exatamente. Pensamento perfeito!
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O ideal seria fecharmos os olhos confiando totalmente que a “lei” como um todo entre os homens estivesse sendo aplicada corretamente de cima para baixo e aos sermos julgados aceitariamos então sem pestanejar a condenação. Jamais ocorre sine qua non para nossa realidade. Boa reflexão, Fernando!
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