Os Fundamentos da Vida Espiritual no Ensino de Abba Moisés


Inspirai, ó Deus, as nossas ações, e ajudai-nos a realizá-las, para que em vós comece e para vós termine tudo aquilo que fizermos. Por Cristo, Senhor Nosso. Amém.


Dedico também este post ao livro “Conferências”, de São João Cassiano.

Vou sumarizar aqui o conteúdo das duas conferências com o Abba Moisés, que tratam dos fundamentos da vida espiritual.

É importante não confundir este Abba Moisés com São Moisés, o Negro (também conhecido como Abba Moisés o Grande, o Ladrão, o Abissínio, o Etíope e o Forte).

Ambos adotaram o nome de Moisés, são Padres do Deserto, viveram suas vidas de monges nos desertos do Egito, e inclusive na mesma região e na mesma época. Por causa disso, muitos os confundem, ou juntam as experiências de ambos como se fossem a mesma pessoa, mas este não é o caso.

Sabemos disso porque em sua obra intitulada “Synaxaristes”, São Nicodemos, o Hagiorita, nos informa que o Moisés comemorado em 28 de junho não é o etíope, pois este é comemorado em 28 de agosto. Portanto, acredita-se que o Moisés mencionado neste dia (28 de junho) seja o Moisés com quem São João Cassiano conversou, sendo a conversa registrada nos dois primeiros livros das “Conferências”. Sabemos que este Moisés não é o mesmo São Moisés, o Negro, pois ele afirma especificamente neste texto que entrou no mosteiro do deserto em sua juventude, enquanto é bem sabido que São Moisés, o Negro, entrou no deserto e se tornou cristão muito mais tarde em sua vida.

Com isso esclarecido, vamos diretamente à síntese dos ensinamentos de Abba Moisés:


Os Fundamentos da Vida Espiritual no Ensino de Abba Moisés

Conforme exposto nas Conferências I e II de São João Cassiano


1. O Scopos e o Telos da Vida Cristã

No coração do caminho espiritual, conforme ensinado pelos Padres e transmitido por Cassiano, está uma dupla orientação:

  • O Scopos (σκοπός) – o objetivo imediato:

“A Pureza do Coração” (puritas cordis), definida como “o amor de Deus livre de todos os afetos terrenos” (Conferência I.4).

  • O Telos (τέλος) – o fim último:

“O Reino de Deus”, ou seja, a união eterna e perfeita com Deus, a plena visão beatífica (Conferência I.4).

Todo ato, pensamento e disciplina devem ser avaliados conforme essa dupla orientação:
Isto conduz à Pureza do Coração?
Prepara a alma para o Reino?


2. A Regra de Toda Prática Ascética: Conduz à Pureza do Coração?

Abba Moisés insiste que o valor de todos os esforços ascéticos — jejum, vigílias, silêncio, trabalho manual, leitura das Escrituras, solidão — não se mede pela severidade exterior, mas por sua utilidade em servir ao scopos, isto é, a Pureza do Coração.

“O fim da nossa profissão é o Reino de Deus… mas o objetivo imediato (scopos) é a pureza do coração, sem a qual esse fim não pode ser alcançado.” (Conferência I.4)

Portanto:

  • Um jejum que conduz ao orgulho não serve ao objetivo.
  • Um estudo das Escrituras que infla a mente, mas deixa o coração frio, é perigoso.
  • Mesmo a caridade ou a obediência, se não estiverem enraizadas no movimento intencional em direção à pureza, podem tornar-se confusas ou hipócritas.

3. A Discrição: Guardiã, Juíza e Guia do Caminho

Daí surge a necessidade da Discrição (Latim: discretio, Grego: diákrisis), tema central da Conferência II.

“A Discrição é mãe, guardiã e guia de todas as virtudes.”
“É a fonte e raiz de todas as virtudes, e a guia segura de toda ação humana.” (Conferência II.2)

Somente a Discrição:

  • Julga com retidão se um ato serve ao scopos (Pureza do Coração);
  • Previne os extremos, como o jejum excessivo ou a preguiça espiritual;
  • Ordena as virtudes, para que não sejam isoladas, contraditórias ou orgulhosas;
  • Protege a alma da ilusão demoníaca, da heresia e do autoengano vão.

Sem ela, diz Abba Moisés, até o bem torna-se perigoso.


4. A Tríplice Origem dos Pensamentos: A Prática da Discrição Começa na Mente

Conforme ensinado nas Conferências I.18–20, o discernimento é exercido principalmente no nível dos pensamentos, que podem provir de:

  • Deus – inspirações puras que elevam a alma;
  • O diabo – tentações enganosas ou perversas;
  • Nós mesmos – pensamentos que brotam da memória, emoções, hábitos ou disposições.

“Nem todo pensamento que surge em nossos corações deve ser acreditado, pois alguns são semeados pelo diabo, outros vêm de nós mesmos, e outros são enviados por Deus.” (Conferência I.19)

O monge discernente torna-se como o “cambista aprovado” dos Evangelhos (cf. Mt 25,27), que examina cada moeda, aceitando apenas o que é verdadeiro e de origem divina – o ouro testado e comprovado.


5. A Discrição é Dom de Deus, Recebido pela Humildade e pelos Anciãos

Ainda que seja a chave de todo progresso espiritual, a Discrição não pode ser adquirida apenas pelo esforço humano.

“O ensinamento da Discrição não se adquire apenas pelo esforço humano, mas deve ser obtido pela graça de Deus.” (Conferência II.4)

No entanto, a graça não desce arbitrariamente — ela vem por certos meios, especialmente:

  • A Humildade – a pobreza interior do espírito que reconhece a própria ignorância e fraqueza;
  • O ensinamento dos anciãos – submissão àqueles cuja vida é marcada pela experiência, sabedoria e graça divina;
  • Obediência e vida em comunidade – pois ninguém é juiz de si mesmo.

“A experiência frequentemente engana, e a idade nem sempre é sábia; mas a Humildade jamais falha.” (Conferência II.10)


6. O Solo da Humildade e a Raiz da Discrição

A relação entre Humildade e Discrição é belamente orgânica:

  • A Humildade é o solo: nenhuma virtude pode crescer sem ela.
  • A Discrição é a árvore: uma vez plantada na Humildade, cresce para abrigar e sustentar todas as outras virtudes.
  • E a própria Discrição, ao crescer, protege e aprofunda a Humildade, pois nos revela continuamente nossa dependência de Deus.

“O monge que confia em seu próprio julgamento é como uma árvore sem raízes: ao primeiro vendaval, cairá.” (Conferência II.12)

E ainda:

“Não sejas sábio aos teus próprios olhos.” (Provérbios 3,7) – versículo citado repetidamente por Abba Moisés.

Portanto, a autoconfiança — mesmo quando disfarçada de zelo — é inimiga da vida espiritual. Ela nos isola da graça de Deus e da comunhão dos santos que nos instruem.


Conclusão: O Fundamento Correto

O que recebemos das Conferências I e II é nada menos que a estrutura do edifício espiritual:

  • O fundamento é a Humildade.
  • A raiz é a Discrição.
  • O objetivo é a Pureza do Coração.
  • O fim último é o Reino de Deus.
  • O caminho se traça através do discernimento dos pensamentos, rejeição da vontade própria, e submissão à graça mediante a obediência e a oração.

“Todas as virtudes, sem Discrição, são ou corrompidas pelo excesso ou destruídas pela negligência.” (Conferência II.2)


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