
Inspirai, ó Deus, as nossas ações, e ajudai-nos a realizá-las, para que em vós comece e para vós termine tudo aquilo que fizermos. Por Cristo, nosso Senhor. Amém.
Atualmente, estou lendo o livro “Conferências”, do São João Cassiano – teólogo do período Patrístico, um dos Padres do Deserto.
O livro foi escrito antes do ano 400 d.C., mas como bem sabemos, e Deus nos ensina, “não há nada de novo debaixo do sol” (Eclesiastes 1,9). Não deveria ter me impressionado tanto, então, a clareza com que o livro descreve coisas comuns do ano 400 como se estivesse nos ensinando sobre os problemas “modernos” que lidamos hoje no dia a dia.
Para o post de hoje, vou concentrar em um tema específico abordado neste livro por São João Cassiano, que é o que nós chamamos de “workaholismo” (forma aportuguesada do inglês “workaholic”) – também conhecido como “trabalhomania”, vício em trabalho, compulsão por trabalho, e outros termos similares.
É uma daquelas coisas que ninguém genuinamente aceita sobre si próprio: ninguém se autodenomina um “workaholic” ou um maluco compulsivo por trabalhar. Mas, infelizmente, talvez este termo se aplique à maioria das pessoas hoje em dia, que dedicam as suas vidas a trabalhar para ganhar dinheiro e depois pagar contas e se divertir com o que sobrar. Quem vive assim, é um “workaholic” – um maluco compulsivo por trabalhar.
Mas, vamos ao que nos diz São João Cassiano, que é infinitamente mais proveitoso do que qualquer coisa que eu possa inferir sobre o assunto. De fato, o diagnóstico Patrístico do coração humano é atemporal.
Neste segmento do livro, São João Cassiano trata do seu diálogo – a sua “conferência” – com um dos monges do deserto do Egito, Abba Isaac.
Abba Isaac nos ensina que essa compulsão por trabalhar – o tal do “workaholismo” – não é meramente uma escolha econômica, mas uma patologia espiritual: o apego do coração ao excesso – ao que vai além do necessário para a vida e para a oração.
Isso é o que se chama de philargyria (φιλαργυρία) – o amor ao dinheiro, mas que não se refere primariamente à ganância, mas sim à falta de confiança em Deus e a um desejo desordenado de autossuficiência. É o modelo americano do “self-made man”, que o brasileiro copiou como modelo de vida.
Vamos aprofundar essa afirmação:
Abba Isaac sobre “Workaholismo” e a Paixão pelo Mundo
“Tudo o que ultrapassa o mínimo de alimento diário e as necessidades inevitáveis da carne contribui para a preocupação e a ansiedade mundanas.”
Aqui, Abba Isaac traça uma linha clara: “o mínimo” é a verdadeira medida das necessidades de qualquer cristão. Ultrapassá-lo é convidar a ansiedade, prender a mente e sobrecarregar o coração com preocupações que impedem diretamente a oração.
“Se trabalhar por um só sólido (um dinheiro) fosse suficiente para prover as necessidades do corpo, mas quiséssemos nos esgotar com mais esforço e trabalho para ganhar dois ou três sólidos (dois ou três medidas de dinheiro)… estaríamos manifestando a paixão pelo mundo.”
Aqui está o ponto principal: não se trata da quantidade de trabalho, mas do motivo. Mesmo algo aparentemente “neutro”, como um esforço extra, torna-se uma doença espiritual se nasce do desejo por ter mais – um conceito Patrístico mais amplo que apenas o desejo sensual.
Afinal, a “concupiscência” (ἐπιθυμία) pode se aplicar a qualquer desejo desordenado: status, controle, conhecimento, dinheiro, produtividade.
Comentário Patrístico: Desejo por Mais é uma Paixão
São João Cassiano, Instituições, Livro 7.21, relaciona diretamente isso ao demônio da avareza:
“Não são apenas os que acumulam riquezas, mas também os que buscam mais do que é estritamente necessário, que são feridos por essa paixão. Mesmo aquele que nada possui, mas se angustia para ganhar mais do que precisa, está preso pelo espírito da ganância.”
São Basílio Magno chama isso de pleonexia — o desejo pelo “mais”:
“O que você guarda além da sua necessidade pertence aos pobres.”
(Homilia sobre Lucas 12,18)
À luz disso, o workaholismo é uma doença espiritual, pois flui da pleonexia – uma ganância sutil e culturalmente aceita – e leva diretamente à merimna, o tumulto mental que bloqueia a oração.
O Ciclo Vicioso: Ansiedade → Desejo por Mais → Ansiedade…
Abba Isaac descreve um ciclo ainda visível da vida moderna:
- Trabalhamos mais do que o necessário, justificando como “responsabilidade” ou “segurança”.
- Isso aumenta a confusão mental, o que gera mais ansiedade.
- A ansiedade diminui a atenção a Deus e torna a oração superficial ou até mesmo impossível.
- O vazio nos leva a mais apego ao trabalho ou riqueza para sentir que temos algum “controle” sobre o caminho da vida.
- E assim o ciclo se aprofunda, e se reinicia.
Ele corta as mentiras que contamos a nós mesmos e chama isso pelo nome verdadeiro: paixão mundana. Por isso, os Padres insistem universalmente na pobreza de espírito, contentamento e na quietude espiritual (hesychia) como fundamentos inegociáveis da oração.
A Única Alternativa: Suficiência Santa
Os Padres apontam para a autarkeia (αὐτάρκεια) – “suficiência santa” ou contentamento. Isso não é preguiça ou falta de ambição – é a virtude pela qual a alma diz:
“Tenho o suficiente, porque tenho Deus. O que mais preciso?”
1 Timóteo 6,6 expressa esse espírito:
“De fato, a piedade com contentamento é grande fonte de lucro.”
Um Belo Exemplo: Santo Antão, o Grande
Quando Santo Antão renunciou à sua herança e viveu com quase nada no deserto, não abraçou a pobreza por si mesma, mas para ter liberdade da ansiedade, liberdade para a oração. Atanásio escreve em A Vida de Santo Antão:
“Era como um homem com asas. Nada o prendia. Passava seus dias em oração e salmos como se já vivesse no céu.”
É isso que Abba Isaac está nos convidando a viver. Ele expõe até mesmo o nosso “trabalho santo” quando feito com o motivo errado – seja de leigos em suas carreiras, monges em obediência, ou clérigos em ministérios. Se o trabalho excede o que é verdadeiramente necessário, é desejo mundano de aumento, e nublará a mente, sufocará a oração e atrasará a theosis – a unificação com Deus, que é o único propósito da vida humana.
A Participação Dos Demônios no “Workaholismo”
Abba Isaac declara que esse “workaholismo” – esse desejo por mais – “a experiência absolutamente irrefutável nos ensinou que ocorre por instigação dos demônios.” E ele conta o exemplo de outro Abba – monge do deserto – sobre como um demônio o instigou a trabalhar sem cessar, mesmo com coisas boas, até que ele perdeu de vista o propósito do trabalho.
Abba Isaac nos ensina que até o bom trabalho – feito por obediência, sustento, ou mesmo caridade – pode ser manipulado pelos demônios se se torna um fim em si mesmo ou se desconecta a alma do scopos (objetivo) e do telos (fim) da vida cristã: oração incessante, quietude interior e comunhão com Deus.
Eis a passagem completa para nossa apreciação (Conferência IX, cap. 8):
“A experiência absolutamente irrefutável nos ensinou que isso ocorre por instigação dos demônios. Pois quando querem afastar os religiosos das buscas espirituais, incitam-nos à diligência no trabalho. Sugerem uma razão oportuna para seus esforços, dizendo que o que estão fazendo é necessário para os pobres ou para o próprio mosteiro. O objetivo é mantê-los ocupados no trabalho por mais tempo do que é apropriado, para que não saiam dele nem se libertem para a oração.”
Vamos analisar isso com cuidado:
1. Até o Trabalho Necessário Pode Ser Tentação
Abba Isaac deixa claro: os demônios nem sempre nos tentam com o mal. Muitas vezes, nos tentam com o bem – no momento errado, com a medida errada, ou com o motivo errado. Este é o clássico falso bem: transformar o meio em fim.
Mesmo o trabalho santo pode se tornar uma armadilha espiritual quando:
- Excede o necessário.
- É feito sem recolhimento orante.
- Torna-se desculpa para abandonar o silêncio ou a contemplação.
- Alimenta a vanglória, o controle ou a agitação, em vez da humildade.
2. O Discernimento dos Espíritos É Essencial
É por isso que o dom do discernimento (diakrisis) – tão enfatizado por São João Cassiano e os Padres do Deserto – não é opcional. Como ele escreve na Conferência II (com Abba Moisés):
“A discrição é mãe, guardiã e guia de todas as virtudes.”
Sem discernimento, podemos confundir uma inspiração demoníaca de zelo com virtude. Alguém pode trabalhar até tarde “pelos pobres” ou “pela Igreja”, quando na verdade está sob influência de um demônio de distração ou vaidade.
Abba Isaac nos alerta que coisas boas, se feitas sem referência a Deus, podem se tornar coisas demoníacas.
3. O Tempo Deve Ser Santificado — Não Usado ou Preenchido
No centro dessa tentação está uma falsa relação com o tempo.
Em vez de tempo ser sacramento – orientado para o kairós, o tempo de Deus, de oração e encontro divino – torna-se chrónos, um peso a ser preenchido, consumido, conquistado.
São duas formas de entender tempo: ou ele é de Deus, criado por Deus e para Deus como a finalidade – kairós; ou ele é humano, criado por humanos, para as finalidades humanas – chrónos.
Como disse São Nilo do Sinai:
“O tempo é para a oração; todo o resto é roubo de tempo.”
Assim, quando os demônios tentam uma alma a “ser útil” além da medida correta, estão na verdade roubando dela a única coisa necessária (Lucas 10,42) — a única que não será tirada: a união com Cristo em silêncio e oração.
4. O Perigo de Perder o Scopos
O Pai que Abba Isaac menciona – um homem de verdadeiro zelo – caiu na armadilha de “trabalhar sem cessar”, fazendo coisas aparentemente boas, até que o trabalho tomou o lugar da oração. Ele perdeu de vista o objetivo (scopos). E sem o scopos correto, o telos (a theosis pela oração contínua) nunca é alcançado.
Este é um alerta espiritual: até mesmo o trabalho virtuoso pode se tornar uma corrente de ouro, prendendo a alma à terra enquanto parece ser santo.
Resumo: A Psicologia da Diligência Demoníaca
O padrão é o seguinte:
- O demônio sugere uma tarefa boa, até santa.
- Incentiva a fazer mais do que o necessário, por razões nobres.
- O trabalho substitui a oração, o silêncio, as lágrimas e a contrição.
- A pessoa se sente produtiva e até justificada em sua distração.
- A alma se distancia de Deus, mas com a consciência tranquila – até que a graça se retire.
Como explicam Abba Isaac e São João Cassiano, esta é uma das tentações mais sutis e perigosas para qualquer cristão que busca Deus com seriedade.