Sobre encontrarmos a paz

“A paz do corpo é a composição ordenada das suas partes; a paz da alma irracional é a tranquilidade ordenada dos seus apetites; a paz da alma racional é o consenso ordenado da cognição e da ação; a paz do corpo e da alma é a vida e a saúde ordenadas do ser animado; a paz do homem mortal com Deus é a obediência ordenada na fé sob a eterna lei; a paz dos homens é a concórdia ordenada; a paz da casa é a ordenada concórdia dos seus habitantes no mando e na obediência; a paz da cidade é a concórdia ordenada dos cidadãos no mando e na obediência; a paz da Cidade Celeste é a comunidade absolutamente ordenada e absolutamente harmoniosa no gozo de Deus, no gozo mútuo em Deus.”

– Santo Agostinho, “A Cidade de Deus”, Livro XIX, Capítulo XIII

Hoje vou escrever um pouco sobre paz – a verdadeira paz, não a paz sobre a qual as pessoas modernas regurgitam todos os dias nos mais diversos sentidos, sendo que nenhum deles se refere ao seu verdadeiro significado. Não vamos falar da paz dos bobos; não é a paz dos cegos que guiam cegos.

Conforme definiu acima Santo Agostinho, qualquer forma de paz depende da ordem dos elementos que conduzem à determinada paz. Por exemplo, “a paz da alma racional é o consenso ordenado da cognição e da ação”. Em outras palavras: é quando você se distancia dos animais através da racionalidade que somente o homem possui, e o seu intelecto determina a sua ação, e a sua ação acontece de acordo com o comando do intelecto. Parece simples, mas nos tempos de hoje, em que todos sofremos os danos do pensamento moderno, que eleva o individualismo ao extremo e busca moldar Deus e a sua criação à cabecinha do homem, não é tão simples quanto aparenta.

Quem nunca se sentiu emocionalmente abalado, reagiu com frases ou ações que correspondem a essa insatisfação, e na sequência ainda se justificou dizendo que “eu agi conforme eu estava sentindo” – como se isso fosse algo natural, normal de todos nós, e ordenado. Ora, agir assim nada mais é do que anular o que você tem de humano e agir como os animais agem. Neste exemplo desordenado, a paixão interna se sobrepôs à racionalidade, e a ação correspondente veio pela paixão, essa emoção descontrolada. É exatamente assim que os animais agem: senti fome, vou comer; senti sono, vou dormir; senti sede, vou beber; senti raiva, vou atacar, etc. Deus espera de nós, que temos racionalidade, que sejamos capazes de agir de acordo com ela – caso contrário, não haveria diferença alguma entre nós e qualquer cachorro de rua. Usando o mesmo exemplo, agir de acordo com a racionalidade seria: sentir emocionalmente abalado da mesmíssima forma, porque esta parte inicial foge do nosso controle; mas refrear a paixão descontrolada através da imposição do domínio do intelecto e, na sequência, agir de acordo com o que a racionalidade prescreve – certamente, será uma ação muito diferente daquela prescrita pela emoção. É isso que se espera de um ser humano racional, e agir assim o eleva mais e mais a cada vez que é praticado com sucesso, fortalecendo a racionalidade e enfraquecendo as paixões. Como toda virtude, esta não é conquistada de graça e nem vem de presente pela natureza – depende de você entender, praticar, errar, corrigir, e repetir a prática até incorporar esta forma de agir como algo natural do seu ser. Os outros dirão que você “lida tão bem com as adversidades”; você sabe melhor, e que teve que batalhar para construir essa pessoa superior. Para os outros, qualquer habilidade conquistada parece ser “algo da pessoa”, algo natural, algo da personalidade dela. Nós sabemos que nunca é tão simples assim.

Escrevi tudo isso para chegar ao seguinte ponto: as pessoas que eu chamo de infelizes (as que vivem sem compreensão e nem consideração sobre isso tudo), são infelizes porque na sua infelicidade (que a maioria até chama de felicidade) elas não têm a tranquilidade da ordem nas suas vidas. Como vimos acima, qualquer forma de paz depende da ordem dos elementos que conduzem à determinada paz. Paz e ordem caminham juntos. Uma pessoa sem compreensão disso não é capaz de alcançar qualquer forma de paz, e vivendo com esta desordem, não devemos nunca as chamar de felizes, pois a felicidade depende de uma ordem que elas desprezam.

Ainda assim, como bem explica Santo Agostinho, estes infelizes, “porque é merecida e justamente que eles são desgraçados, não podem, mesmo na desgraça, que é a sua, estar fora da ordem”. Em outras palavras: estas pessoas são infelizes merecidamente e isso é justo, e a sua falta de consideração ou compreensão sobre a necessária ordem que conduz à paz e plenitude não os livra de forma alguma da regra do jogo. Não gostar de regra não o faz viver sem as consequências de quebrar as tais regras – da mesma forma, pensar que paz e plenitude podem vir sem a regra da ordem não lhe livra de viver infeliz na sua ignorância buscando algo certo através das formas erradas. A regra do jogo é uma; a regra é igual para todos; ou você conquista paz e plenitude de acordo com a regra, ou você viverá sem paz e plenitude, mesmo que você chame outras coisas por estes nomes, sem saber do que está falando. É precisamente através da lei da ordem que os infelizes são separados dos santos.

Nem mesmo o Diabo e os seus demônios estão livres da mesmíssima regra do jogo. Santo Agostinho escreve que há “uma natureza na qual mal nenhum existe, na qual nem mesmo mal algum pode existir; mas não pode haver uma natureza na qual não haja bem algum”. Ou seja: toda a criação, das menores células que nossos olhos nem conseguem perceber até o próprio Diabo, por serem criação de Deus, que é puramente bom, têm naturezas boas. A regra do jogo – aquela lei da ordem que tantos desprezam – determina que a natureza é boa. É por isso que é possível existir” uma natureza na qual mal nenhum existe”, como no caso de Deus, mas não é possível existir uma natureza na qual não exista nenhum bem. Dessa forma, o Diabo, os seus demônios, e todas as pessoas infelizes, perdidas, satisfeitas com as coisas deste mundo, têm a natureza do bem apesar das camadas de erros e ideias terríveis que o recobrem. “A natureza do próprio Diabo, como natureza, não é um mal. A perversidade é que a torna má”, conforme escreve Santo Agostinho. Esta perversidade a qual ele se refere é precisamente toda forma de pensar e agir que ignore ou se rebele da lei da ordem, que é a regra do jogo para todas as formas de vida. Quebrar esta regra é escolher viver sem paz e plenitude.

A perversidade dos infelizes sempre se torna evidente quando se observa como eles se relacionam com as coisas boas da criação que nos foram dadas por Deus para nos fortalecer durante esta breve peregrinação mundana que chamamos de vida. Me refiro a coisas como: comida, bebida, entretenimento, sexo, diversão, dinheiro, etc. Em si, todas estas são coisas boas – afinal, foram criadas por Deus, e toda criação reflete o Criador. A regra do jogo é evidente: quem fizer bom uso destes bens da criação irá receber bens superiores e de maior valor, como é a paz da imortalidade, com toda a honra e glória apropriada para os vencedores que compartilharão dos bens eternos juntos a Deus para toda a eternidade. Já aqueles que fizerem mal uso desses bens, o castigo é justamente perdê-los para sempre na vida eterna de punição que lhes aguarda.

Sabendo disso, fica claro que todo o uso destes bens temporais se relaciona à vida do homem nesta peregrinação terrestre, a sua paz em vida; sendo que na vida eterna no Reino do Céu, se relaciona com a bênção da vivência com uma paz eterna. É por isso que para os animais irracionais basta viver de acordo com as suas paixões do momento – as suas vontades, o instinto de evitar dores e buscar prazeres. Por não terem alma, vivem puramente a vida do corpo, que morre e retorna para a terra. Já os homens irracionais, os infelizes que possuem por natureza a racionalidade, mas vivem de acordo com as regras do mundo animal, eles buscam através da paz do corpo alcançar uma paz da alma – algo absolutamente impossível, pelos motivos que já contemplamos acima. São as pessoas que buscam felicidade em trabalho, dinheiro, diversão, sexo, amigos, festas e todas as categorias de “prazeres pessoais”. Ora, todas estas coisas são bens que visam a paz simplesmente do corpo – bens que os animais irracionais também buscam. Onde fica a paz da alma em uma vida assim? E sendo a parte racional do homem a que nos difere dos animais, e que reside na alma, a resposta é que a paz da alma é absolutamente abandonada.

Todos nós buscamos paz e plenitude. Buscar no lugar errado, ou fazer uso errado das ferramentas corretas, conduz ao oposto de paz e plenitude – o resultado é sempre a vida dos infelizes, tão comum nos dias de hoje. A regra do jogo é uma, e é a mesma para todos. Não existe paz e plenitude nesta vida – o que existe aqui são vestígios do que se pode alcançar plenamente e para sempre na vida eterna do Reino do Céu, incentivos para sentir um pouquinho aqui do que se viverá plenamente por lá. O mal uso destes incentivos significa um tapa na cara de Deus. É por isso que nós, enquanto vivemos nestes corpos temporais, devemos nos entender como peregrinos caminhando em trilhas em terras estrangeiras, distantes do endereço do nosso destino, a vida com Deus no Reino do Céu. É por isso que nós caminhamos pela fé, e não pela visão ou pelos outros sentidos que só nos informam sobre este mundo temporal. É por isso que devemos entender todas as formas de paz, seja ela do corpo ou da alma, em relação àquela paz que existe entre o homem mortal e o Deus imortal. Esta é a única forma de viver com obediência à regra do jogo, com fé e em submissão à lei da ordem – pois, como vimos, toda paz depende desta ordem.

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