A avaliação real de como é o automobilismo hoje

Aproveitando o gancho do meu último post, sobre eu ter voluntariamente escolhido abandonar as competições de automobilismo, aqui vai mais um dentro desse mesmo tema, respondendo especificamente a uma pergunta que eu sempre recebo de gente do mundo todo: “como eu faria para me tornar um piloto profissional hoje?”

Os caminhos são os mais variados. Hoje em dia, não existe mais aquela sequência lógica que ouvíamos falar no passado: faz kart, depois Fórmula 3 Inglesa, e sobe para a Fórmula 1. Hoje mudou tudo. Não depende mais de qual categoria você decide participar, tem como chegar na Fórmula 1 vindo de qualquer categoria. Isso é um ponto positivo: pluralidade de opções.

Mas existe um ponto extremamente negativo também, que afeta todo e qualquer caminho que você decidir percorrer: o seu talento, ou qualquer dom natural que você tenha herdado, não fazem a mínima diferença hoje, e isso pode até trabalhar contra o seu maior interesse.

“Ué! Como assim o talento não faz diferença?” Se você é um fã de automobilismo, devido ao seu amor pelo esporte você deve estar se perguntando isso. Já outras pessoas lendo aqui, que não são necessariamente fãs de automobilismo, não devem ver nada demais nisso, afinal, em qualquer outro emprego comum o seu talento também não significa que você é mais valorizado do que outra pessoa sem talento.

Fato é que as empresas gigantes que mandam no automobilismo mundial e ditam o rumo do esporte perceberam há alguns anos que depender da existência de talento para se ter um bom show – um bom negócio – era um risco enorme de investimento. Imagina você, como investidor de milhões de dólares, ter uma incógnita permanente sobre o retorno do seu investimento, dependendo da existência de humanos talentosos que proporcionam um show que as pessoas queiram ver. É um risco absurdo, e óbvio que você, que vê automobilismo como um investimento, um negócio, e não um esporte, tem total interesse de minimizar esse risco.

Qual foi a solução encontrada pelos investidores, que são os donos do esporte mundialmente? Bem simples: vamos controlando os regulamentos para que a tecnologia substitua cada vez mais o fator humano – o talento ou falta de talento dos pilotos. Então vem mais e mais tecnologia, chegando a um ponto hoje em que os pilotos nem sabem tudo o que eles têm no carro, e os engenheiros comandam todo o show lá dos bastidores. Mas na prática, como isso funciona? A tecnologia substitui o fator humano, eliminando assim a vantagem dos talentosos e promovendo um equilíbrio com os que não têm talento algum. Dessa forma, você não precisa mais de pilotos brilhantes para se ter um bom show – você pode ter qualquer piloto, que a tecnologia vai permitir ele se tornar relevante.

É por isso que, antigamente, você pegava um Ayrton Senna e colocava ele no mesmo carro do Satoru Nakajima na Lotus, e o nosso Ayrton botava três segundos por volta no japonês. O fator humano era muito mais evidente e valorizado, para benefício do Ayrton, e para a tristeza do Nakajima. Se o cenário fosse o de hoje, o Ayrton seria uns 2 a 3 décimos mais rápido que o Nakajima somente – ele largaria na pole-position, e o japonês em segundo ou terceiro.

Pensando agora como o investidor do negócio, você consegue ver qual é o problema de se valorizar tanto o fator humano? Primeiro, os caras talentosos fazem muita diferença, o que faz eles se tornarem cada vez mais caros de se manter. Segundo, os pilotos sem talento nunca terão chance alguma de aparecer – a não ser quando fazem alguma cagada interessante!

Mas a principal questão que motiva os investidores a acabarem com o talento e o fator humano é uma só: com a tecnologia nivelando todos, fica fácil você escolher o perfil de piloto que você quer, e ele nunca fará feio demais – às vezes, até vira um suposto gênio aos 16 anos de idade, como vemos hoje. Na prática, funciona assim: você é uma empresa alemã, e você quer um piloto alemão, e ele precisa fisicamente ou pelo seu jeito de ser trazer alguma semelhança a um piloto conhecido do passado. Esse é o seu plano de marketing. Porra, se depender de buscar alguém com todos esses filtros, e o cara ainda precisar ter um dom natural para pilotar carros de corrida, as suas chances de encontrar o cara certo para investir são baixíssimas. Agora, se você eliminar esse fator humano, suas chances aumentam bastante!

Outra questão importantíssima do ponto de vista do investidor é a seguinte: se a tecnologia toma conta de tudo, e quem tem mais ou menos tecnologia é resultado de níveis diferentes de investimento, todos os resultados se tornam muito mais previsíveis. Você como investidor sabe que se investir na Mercedes ou na Ferrari na Fórmula 1 hoje, você terá um retorno de investimento seguro com seus pilotos quase sempre no pódio. Se você investir em uma equipe mediana, você sabe que terá o retorno correspondente de resultados medianos. Em uma equipe das mais baratas, terá resultados dos mais baratos. Tudo fica acertado mesmo antes de acontecer. Todos os investidores sabem em que estão apostando, e sabem o quanto vão receber de volta por isso. O risco deixa de existir!

Agora você consegue ver como todos saem ganhando? Talvez não você, fã de automobilismo, que tem aquela nostalgia dos dias de ouro do esporte e busca resgatar isso nas corridas sem graça de hoje em dia, ou você que é um fã mais recente, que nunca viu como as coisas eram tão mais interessantes no passado. Mas sim, todos que importam saem ganhado: os investidores, as empresas, os pilotos, os engenheiros, etc. Só você, que ama o esporte, perde com isso – mas eles não ligam para isso, enquanto vocês continuarem a assistir as corridas e permitir indiretamente que essa realidade de hoje continue a acontecer.

O nosso amado Ayrton Senna morreu em 1994. Desde então, os investidores sentiram nos bolsos o risco de se depender de super talentos para se ter um bom show. Usando a morte do Ayrton como pretexto, veio essa história de se introduzir mais e mais tecnologias em nome da “segurança do esporte” – sim, tudo ficou mais seguro, mas a intenção real era simplesmente introduzir tecnologias que fossem substituindo o fator humano dos pilotos. Aí todo mundo engoliu, e o que era um esporte virou simplesmente um negócio.

Por que ninguém fala disso? Porque quem fala e conduz o tema são os jornalistas especializados. Se o jornalista de automobilismo te contar essa história, e você fã de automobilismo deixar de assistir essas corridas sem graça, ele se torna irrelevante e perde o emprego. É bem simples: o dever do jornalista especializado é manter os fãs interessados e engajados com o assunto. O emprego dele depende disso. Então eles te enganam, pintam emoções onde elas não existem, escondem fatos importantíssimos, e manipulam a realidade para que você, fã de automobilismo, continue a servir aos interesses deles.

Enfim, daria para escrever um livro inteiro sobre esse tema. A cada parágrafo que eu escrevo eu já penso em uns três a mais. Vou parar por aqui, por enquanto…

7 comentários sobre “A avaliação real de como é o automobilismo hoje

  1. Muito bem detalhado.
    Vemos o motivo do desinteresse de tantos por automobilismo hoje.
    É uma grande pena, mas como você disse, um bom negócio para os “prioritários “.
    E pena q isso é presente também em outras categorias: valor, inteligência, raça, dom … tudo isso vale nada ou muito pouco.
    Adorei!!!!! 👏👏👏👏

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  2. Este texto explica de maneira simples, porém detalhada uma desconfiança que eu tinha sobre o que se considera automobilismo nos dias de hoje: somente um grande negócio. Mas por outro lado, longe de coberturas midiáticas multimilionárias, mantidas por grandes corporações que tem por objetivo tornar nossa vida mais chata(e de alguma forma direta ou indireta tiram proveito muito lucrativo disso), está aquilo que vejo como o verdadeiro automobilismo; seja em pistas de terra, ou estes campeonatos locais disputados por carros de rua 1.6 com preparação modesta espalhados pelo país, até mesmo em categorias amadoras(ou quase). É lá que pode haver talento. Eu creio nisso.

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  3. Cara, que post genial. Nunca tinha olhado a situação atual do automobilismo sob essa ótica, mas faz total sentido. Não deve ser fácil para os pilotos talentosos manter a motivação em um cenário desses. E com o esporte se tornando mais business a cada dia que passa, a tendência é piorar ainda mais, infelizmente…

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    1. Obrigado, cara. É verdade. A tendência é ir apaixonando os fãs pela tecnologia e não pelos pilotos, para eventualmente termos corridas sem pilotos, com carros com inteligência artificial.

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